22.11.07

Estou extremamente indignado

Há um estado de alma, muito português, que eu adoro: a extrema indignação. Estar "extremamente indignado" é um dos mais assertivos e nobres gestos de cidadania. Um direito inscrito na estratosfera constitucional, garantem alguns. O bom cidadão é aquele que mantém intacta a capacidade para se indignar de modo extremo. E nós estamos bem servidos de cidadãos exemplares. Todos os dias surgem pessoas extremamente indignadas. Não um pouco, nem muito ou sequer apenas indignadas. Extremamente indignadas, mesmo. Funcionários extremamente indignados com o governo; idosas (somos também um país de velhos) extremamente indignadas com o preço do pão; jovens extremamente indignados com o embaraço da escolha e o rumo do mundo; gente extremamente indignada com as declarações de ... [acrescentar nome de figura pública]. Depois, dentro da extrema indignação, há subgéneros em franca expansão. A indignação com siglas, por exemplo, é um dos que mais tem progredido: jornalistas liberais extremamente indignados com a ERC; gasolineiros de Elvas extremamente indignados com o IVA; Helena Matos extremamente indignada com a ASAE; moradores de Monte Abraão extremamente indignados com a REN; Gerónimo extremamente indignado com a PIDE. Portugal devia organizar anualmente a convenção da indignação, onde, como naqueles encontros de fãs do Star Wars, cada um se apresentaria com a máscara do seu indignado predilecto. Um Chico Louçã aqui, um Fernando Alves acolá, um ex-combatente encostado ao bar, um bombeiro sem meios a fazer xixi no wc. Por cá, até os bêbados vagueiam com uma garrafa na mão e a indignação às costas. Sempre em alta, é uma espécie de lume brando que nos alimenta. É também, paradoxalmente, aquilo que faz de nós uns conformados. Estar extremamente indignado é meio caminho para não fazer nada. Já me indignei, já dei tudo o que tinha a dar. Apareci indignado no telejornal, ganhei créditos para a vida. A indignação é o lexotan do povo, já dizia Oscar Cardozo perante o terceiro anel em fúria. Depois disso só resta carregar a arma e desatar a disparar, como se não houvesse amanhã e fosse este um país desenvolvido. Graças a Deus, ainda não é, e ninguém chega a dar esse passo. Lembro-me de uma novela onde Joel Branco se mostrava extremamente indignado com a gerência de um bar chamado "Catacumbas". Ora, um país onde alguém se indigna com a gerência de um bar chamado "Catacumbas" é um país saudável para criar os filhos. Extremamente indignado, mas feliz.